7 de maio de 2010

Uma questão de saúde pública

Por Renata Souza

Negra, moradora do Parque Maré, 51 anos, mãe de seis filhos, J.P. interrompeu quatro gestações. “Infelizmente tive que tomar essa decisão. Ninguém poderia decidir por mim naquele momento, afinal era a minha vida que estava em jogo. Felizmente, não precisei recorrer aos hospitais públicos, porque todo mundo sabe que se chegar a algum hospital com sinais de aborto a pessoa é hostilizada e pode até ser presa”, afirmou J.P., parte de uma estatística de 1 milhão de brasileiras que abortam clandestinamente por ano. O dado integra dossiê lançado em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, nesta segunda-feira (3/5), sobre os direitos reprodutivos da mulher e a criminalização do aborto.


A moradora da Maré escapou por pouco da lamentável estatística que aponta que o aborto inseguro é a terceira causa de morte materna no Rio. “Eu quase morri naquela clínica. É uma cirurgia muito delicada, que além de mexer com o nosso corpo inteiro, mexe muito com a mente”, disse. O dossiê, produzido com uma abordagem de direitos humanos, denuncia que o alto índice de mortalidade materna reflete os problemas relacionados à precariedade dos serviços de saúde oferecidos às mulheres, além das questões sociais, econômicas e culturais predominantes. Para a dona de casa, “o governo deveria investir em prevenção, e não prender as mulheres que não tem qualquer condição para levar em frente uma gravidez indesejada”.

De acordo com a integrante do Ipas Brasil, Leila Adessa, o artigo 124 do código penal, que prevê a detenção de quem interrompe uma gravidez, traz restrições ao acesso a serviços de saúde. “Existem barreiras ao acesso até mesmo em casos de aborto previsto em lei. E o estigma que se tem com o aborto deve ser discutido. Temos que recorrer à comunicação e à pesquisa para que junto com o legislativo possamos sair desse problema”, afirmou. Segundo Marcelo Freixo, que preside a Comissão de Direitos Humanos, a descriminalização do aborto é uma luta pedagógica. “Isso deve ser um assunto de saúde pública e não de polícia. Os dados apresentados no dossiê revelam a incapacidade e até a inexistência de políticas de saúde que privilegiem o atendimento a mulheres que por ventura tiveram que praticar o aborto”.

A audiência resultou no reconhecimento por parte do Executivo da necessidade de cumprir a legislação já existente e de se abrir ao diálogo com a sociedade civil em torno do tema. “A Comissão de DH vai mediar esse diálogo que deverá avançar a partir de uma reunião a ser agendada o mais brevemente possível entre a Secretaria Estadual de Saúde e as organizações que reivindicam a humanização do tratamento dado às mulheres na rede pública de saúde”.

O documento, produzido pelas organizações “Jornadas pelo direito ao aborto legal e seguro”, “Projeto Curumim”, “Ipas Brasil” e “Articulação de Mulheres Brasileiras”, apresenta uma série de recomendações. Eis algumas:

*Apoiar os esforços em curso pela descriminalização do aborto no país

*Reforçar a necessidade de campanhas sobre os direitos sexuais e reprodutivos, direcionadas à população mais vulnerável, destacando as mulheres residentes em municípios do interior, jovens e adolescentes.

*Facilitar a compra de medicamentos, especificamente do Misoprostol, através de novas portarias e resoluções que garantam principalmente às maternidades e hospitais de pequeno porte e do interior a obtenção deles.

*Realizar mais treinamentos para melhoria e humanização da assistência do abortamento, incluindo o uso da AMIU, principalmente nos hospitais e maternidades do interior e nos de referência.

*Criar mecanismo de prestação de contas e fiscalização da aquisição de equipamentos e insumos.

*Implantar serviços que garantam planejamento reprodutivo pós-abortamento.

*Estimular ações voltadas para humanização do atendimento ao aborto e revisão do fluxo de acordo com a situação de risco.

*Difundir a Norma técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento: monitorar e avaliar a sua implementação nos serviços.

*Estimular a qualificação de profissionais em todos os níveis da assistência, incluindo gestores e técnicos de saúde da atenção básica, secundária e terciária.

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